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Foto do escritorVitor Mangaravite

Medicina do futuro: o médico está preparado para as implicações jurídicas da telemedicina?

Há menos de dez anos sequer imaginávamos que iríamos trocar as locadoras de DVD’s por Netflix, que trocaríamos o táxi pelo Uber, o telefone pelo WhatsApp, as agências de turismo pelo Booking e os CD’s pelo Spotify.


E o sistema delivery, quem imaginava que teríamos centenas de cardápios de restaurantes na tela de nosso smartphone e milhares de entregadores de iFood, Rappi, Uber Eats andando de lá para cá pela cidade?


Graças aos serviços de streaming, um número imenso de pessoas está pagando para ouvir música, turbinando o mercado fonográfico e abandonando a prática de compartilhamento de músicas de forma gratuita e pirata.


O livro digital não extinguiu o hábito da leitura, pelo contrário, as vendas dos últimos anos dispararam. As redes sociais também não extinguiram as amizades no mundo real, ao contrário, reaproximaram amizades antigas.



Os serviços oferecidos por estas empresas são, sem dúvida, a ponta de um gigante iceberg que está mudando a forma de prestação de serviços em todo mundo.


Todas essas tecnologias modificaram nossas vidas rapidamente. E, na medicina, não é e não será diferente. A telemedicina é um exemplo disso: o vínculo entre tecnologia e saúde não é novo e ocorre há anos, sobretudo quando se trata de inovação, eis que o desenvolvimento tecnológico sempre andou lado a lado com os avanços da medicina.


A tecnologia proporcionou que milhares de pacientes não tivessem a interrupção de cuidados médicos nos períodos de lockdown, ocorridosna pandemia do coronavírus (SARS-CoV-2) em 2020 e 2021.


A telemedicina, então, seria um avanço tecnológico irreversível no atendimento à saúde no Brasil?


Ao que tudo demonstra, sim: o futuro, repentinamente, virou presente na rotina dos médicos. Mas será que os médicos estão preparados para os cuidados jurídicos que devem ter ao realizar o atendimento por meio da telemedicina?


Há dezenas de aspectos legais envolvendo a prática da telemedicina que, caso não sejam observados, poderão comprometer a segurança jurídica da atividade médica.


Neste artigo, abordaremos objetivamente apenas alguns dos principais cuidados jurídicos que os médicos devem observar ao aderir à telemedicina.


Antes, é importante, contudo, que se entenda a regulamentação jurídica da telemedicina no Brasil. Segundo o CFM, a telemedicina é “o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde.” (art. 1º da Resolução CFM nº 1.643/2002).


Não obstante a vigência da resolução CFM nº 1.643/02, esta não contempla diversas modalidades de atendimento médico à distância, como, por exemplo, a teleconsulta, teleorientação, telemonitoramento etc.


Ou seja, a regulamentação editada pelo CFM em 2002 comporta somente algumas situações, como emergências, pacientes que já passaram pelo atendimento presencial, ou com o auxílio presencial de um médico responsável.


Todavia, em decorrência da crise sanitária causada pelo coronavírus, a Lei nº 13.989/2020, autorizou e regulamentou de forma ampla a prática da telemedicina no Brasil, em caráter de urgência, enquanto durar a crise ocasionada pelo Covid-19.


E após ultrapassada a situação de calamidade do coronavírus, será admissível continuar a telemedicina? Acreditamos que sim. Contudo, após a crise sanitária, caberá ao CFM implementar nova regulamentação, conforme dispõe o art. 6º da Lei nº 13.989/2020.


Na prática, a primeira medida que o médico deve adotar para obter a segurança jurídica no atendimento à distância, precede ao atendimento médico, visto que é necessário dispor de meios tecnológicos adequados, para uma comunicação efetiva, humanizada e principalmente segura, como também deve dispor de sistema de prontuário eletrônico adequado às exigências legais.


Mesmo no atendimento à distância, o médico deve, para cada paciente atendido por telemedicina, elaborar prontuário, contendo os dados clínicos, assim como registrar todo o contato realizado com o paciente, como fotos, vídeos, gravações de áudio, exames etc.


O médico tem uma grande responsabilidade ao lidar diretamente com informações confidenciais de seus pacientes, sobretudo, no atendimento à distância. Há diversas leis e regulações que tratam sobre o sigilo e a proteção de informações, como a própria Constituição Federal (art. 5º, inciso X), a Lei de Acesso à Informação, o Marco Civil da Internet, Código de Defesa do Consumidor, a Lei Geral de Telecomunicações e, até mesmo, o Código Penal (at. 154).


Há, ainda, diferentes normas setoriais que versam sobre a necessidade de preservar dados dos pacientes, a exemplo do Código de Ética Médica (art. 73), no âmbito do Conselho Federal de Medicina, normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e do Conselho Nacional de Saúde.


Mas não é só. Em agosto de 2021 entraram em vigor as penalidades estipuladas nos artigos 52, 53 e 54 da Lei 13.709/2018, denominada Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, que é uma lei federal cuja finalidade é resguardar a liberdade e a privacidade de consumidores e cidadãos.


Segundo a lei, os dados relacionados à saúde, além de serem considerados sigilosos, também são considerados sensíveis, conforme dispõe o artigo 5º, II, LGPD. Alguns dados podem, até mesmo, serem considerados como dados anonimizados, segundo determina o artigo 5º, III da lei, e merecem uma proteção ainda mais rígida.


Neste contexto, ao utilizar softwares de prontuários eletrônicos ou aplicativos de comunicação, como Skype, Zoom, WhatsApp e Google Meet, é fundamental estar atento às políticas de privacidade e termos de uso de cada plataforma, bem como verificar se o sistema utilizado possui os certificados de segurança de dados, exigidos por normas técnicas e adequados à lei.


A propósito, a troca de informações entre médicos e pacientes, via aplicativo de mensagens, podem ser praticadas. No entanto, além da obrigação de sigilo, as mensagens devem ser criptografadas, medida de segurança necessária que impede o acesso de terceiros aos dados do software. Ademais, as caixas postais com mensagens armazenadas devem ser igualmente protegidas, já que constam identificação da pessoa do paciente.


Destaca-se, outrossim, que a coleta e armazenamento dos dados de paciente em sistema deve ser prescindida de expressa autorização do mesmo, seja para abertura de novos prontuários, seja para manutenção de dados de prontuários que já estão em sistema, antes da vigência da LGPD.


Desta forma, deve o médico, inclusive, buscar autorização posterior com pacientes já cadastrados no seu sistema, a fim de preservar a privacidade e proteção de dados pessoais dos titulares, segundo regramento trazido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.


Outro aspecto importante em relação a LGPD, é a forma de apuração judicial da responsabilidade civil do médico, por eventual falha na prestação de serviços.


Isso porque, a responsabilidade civil do médico, em regra, é subjetiva, ou seja, exige a comprovação de dolo (deliberação de violar a lei, por ação ou omissão) ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia) do profissional, visto que a atividade médica consiste em obrigação de meio, não de resultado, exceto as cirurgias plásticas estéticas.


Ocorre que a responsabilidade civil do médico, enquanto controlador ou operador de dados sensíveis de seus pacientes, é objetiva, ou seja, de resultado, cabendo ao médico atingir determinado fim – preservar o absoluto sigilo dos dados do paciente (art. 42 da LGPD), remetendo, assim, aos ditames do dever de indenizar, previsto no artigo 927, § único do Código Civil, em caso de danos ao paciente relacionado aos seus dados.


A diferença é que, na responsabilidade civil subjetiva, a vítima/paciente precisa provar a culpa do médico, enquanto que na responsabilidade civil objetiva, como ocorre no âmbito da LGPD, não há necessidade comprobatória de dolo ou culpa do profissional médico, bastando, apenas, a comprovação do nexo causal, que é a ligação que existe entre a conduta do médico e o resultado que essa conduta produziu no manuseio de dados pessoais do paciente.


Assim, o médico que lida com dados pessoais nos termos da LGPD, em caso de falha na prestação de serviço, estará sujeito às sanções previstas na lei, sem a necessidade de comprovar a ocorrência de dolo ou culpa do profissional.


Certamente muitas ações serão ajuizadas com fundamento na LGPD para proteção de direitos, assim como ações civis públicas serão propostas pelo Ministério Público para repelir práticas de médicos, clínicas e hospitais que não observem as exigências da LGPD.


O valor das multas é significativamente elevado. No entanto, as sanções podem ser ainda mais severas, como, por exemplo, o bloqueio do tratamento de dados ou até mesmo tornar pública a infração cometida pelo médico, o que certamente acarretará em danos inestimáveis à imagem do profissional.


Para além da LGPD, diversos outros aspectos legais devem ser observados pelo médico ao adotar a telemedicina. Por exemplo, o médico tem o dever de informar ao paciente todas as limitações inerentes ao uso da telemedicina, tendo em vista a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta (art. 4º da Lei nº 13.989/2020).


De igual forma, deve ser esclarecida pelo médico ao paciente a possibilidade de estender para uma consulta presencial. Na modalidade de interconsulta, o médico assistente deve obter consentimento do paciente para que possa transmitir as informações do paciente para o especialista consultado.


Todas essas informações devem constar no termo de consentimento livre e esclarecido, e este documento deve ser anexado ao prontuário médico do paciente. Na eventual impossibilidade de obtenção de consentimento por escrito para a realização de teleconsulta, o médico deve obtê-lo por meio de aplicativos de mensagens, e-mail, vídeo e anexá-lo ao prontuário médico.


O médico também deve estar atento que a prestação de serviço de telemedicina seguirá os padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial, até mesmo em relação à contraprestação financeira pelo serviço prestado (art. 5º da Lei nº 13.989/2020).


Outrossim, deve o médico observar os preceitos do “Manual de Publicidade Médica” visto que é aplicável na telemedicina. Cabe acrescentar, além do mais, que os atendimentos médicos realizados por telemedicina são de cobertura obrigatória pelas operadoras de saúde, conforme dispõe a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), portanto, o médico pode realizar atendimentos à distância de pacientes usuários de planos de saúde. Recomenda-se, contudo, que o médico entre em contato com a operadora de saúde, da qual é conveniado, e verifique quais os protocolos administrativos a serem seguidos para atendimentos à distância.



Nos casos clínicos relacionados ao coronavírus, o médico deve observar as normas e orientações do Ministério da Saúde sobre notificação compulsória.


Observar, também, que, juntamente com a indicação médica de isolamento, deverá o médico providenciar o termo de consentimento livre e esclarecido e o termo de declaração, contendo a relação das pessoas que residam ou trabalhem no mesmo endereço.


O profissional médico deve estrar ciente que, segundo a definição majoritária dos nossos tribunais, a relação médico-paciente é uma relação de consumo e necessita observar o disposto no Código de Defesa do Consumidor, em especial no art. 6º, incisos II, III, IV, V e VIII e também o art. 9, os quais dispõem sobre os direitos básicos dos consumidores e proteção à saúde e segurança, respectivamente.


Por fim, é importante enfatizar que, ao prestar serviço através da telemedicina, o médico deve estar atento ao teor do Despacho no 270/2021 do Conselho Federal de Medicina, que determina a inscrição secundária quando houver a prestação de serviços em Estados diversos de onde o médico possui inscrição primária, ainda que seja por meio da telemedicina, sob pena de responder a sindicância e até a processo ético-profissional, por conta de violação ao Código de Ética Médica.


Certamente, novas leis serão editadas, centenas de portarias, recomendações, decretos, ofícios são e serão emitidos todos os dias, no âmbito dos Conselhos Regionais de Medicinas, do Conselho Federal de Medicina e das Agências Reguladoras, afetando significativamente as relações jurídicas e a vida dos profissionais de saúde.


O médico notoriamente tão atarefado, necessita, também, refletir sobre as implicações jurídicas de suas atuações no presente momento, a fim de evitar problemas futuros, sejam eles éticos, civis, administrativos ou até mesmo criminais.


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Vitor Mangaravite. É advogado, sócio fundador da Mangaravite Advocacia Médica e é especialista em Direito Médico, master of law / LL.M em Direito Médico pela Católica Business School – UNICAP.


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